Nos anos pós-Primeira Guerra Mundial, o Império Austro-Húngaro tinha sido destruído e das ruínas emergiram vários Estados-Nação. Esses países - entre eles, Áustria, Hungria, Romênia e a antiga Tchecoslováquia - não eram criações arbitrárias. Suas fronteiras refletiam divisões antigas de língua, religião, cultura e etnia. E embora esse arranjo tenha se desfeito no decorrer de duas décadas, isso se deveu, em parte, à ascensão do nazismo e comunismo - ambas ideologias de conquista.
Hoje, os Estados-Nação da Europa Central parecem naturais e inquestionáveis. São entidades políticas estabelecidas, cada uma com um governo eleito por cidadãos que vivem em seus solos.
Quando o Império Austro-Húngaro desmoronou, o mesmo ocorreu com o Império Otomano, cujos territórios abrangiam o Oriente Médio e o norte da África. Os aliados vitoriosos dividiram o Império Otomano em pequenos Estados. Mas a maioria desses novos países só conseguiu existir como democracias durante breves momentos.
Muitos vêm sendo governados por clãs, facções religiosas, famílias ou militares, normalmente - como é o caso da Síria - com o auxílio de violenta supressão de qualquer grupo que questione o poder estabelecido.
As pessoas com frequência explicam a relativa ausência de democracia no Oriente Médio argumentando que a divisão atual da região em territórios não tem qualquer relação com a identidade dos povos que neles vivem. Em alguns países, o arranjo funcionou.
TurquiaAtaturk, um general do Exército turco, foi capaz de defender a porção do império unida pelo idioma turco e transformá-la em um Estado moderno baseado no modelo europeu. Mas em outros países que resultaram do arranjo, muitos habitantes tinham sua identidade definida com base em religião - em detrimento de outros valores.
Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana em 1928, disse a seus seguidores que sua maior prioridade era reunir os muçulmanos do mundo em um Estado islâmico supranacional - ou Califado.
A imposição de fronteiras nacionais sobre povos que se definem em termos religiosos resulta no tipo de caos que temos observado no Iraque, onde sunitas e xiitas brigam pelo poder. E resulta também em um caos ainda maior, que observamos agora na Síria. Ali, uma facção islâmica minoritária - os alauítas - vem mantendo um monopólio sobre o poder desde a ascensão da família Assad.
Europeus, em contraste, tendem a definir a si próprios em termos nacionais. Em situações de conflito, é a nação que precisa ser defendida. E se Deus um dia ordenou de outra forma, então é hora de ele mudar de ideia.
Entre os muçulmanos, no entanto, esse tipo de pensamento é inaceitável. A religião islâmica se baseia na crença de que Deus criou uma lei eterna e cabe a nós nos submeter a ela. Isto é o que a palavra Islã significa: submissão.
O Islamismo sunita era a religião oficial dos otomanos. Nenhum outro tipo de Islamismo era reconhecido formalmente. Judaísmo, zoroastrismo e facções do cristianismo eram tolerados. Mas a história oficial, ao longo de vários séculos, era a de que o império era governado pela Sharia - a lei sagrada do Islã - acrescida de um código civil e pela lei doméstica de várias facções permitidas.
Ataturk aboliu o Sultanato e estabeleceu um novo código civil, baseado em precedentes europeus. E criou uma constituição que expressamente rompia todos os vínculos com a lei islâmica, proibia formas islâmicas de vestimenta, bania a poligamia, impunha um sistema laico de educação e urgia lealdade à terra turca como dever primário de todo cidadão turco.
Em qualquer crise, o cidadão deveria se identificar primeiro como turco. Só depois como muçulmano. Ataturk também autorizou o consumo de álcool, para que o povo turco pudesse brindar à sua nova condição da maneira preferida pelo general.
Ataturk remodelou a Turquia como um país aberto e próspero, que nada devia ao mundo moderno. Porque foi transformado em uma nação definida por língua e território, não por um partido ou fé.
O sufrágio universal para adultos de ambos os sexos foi introduzido na Turquia em 1933. E o país continua a ser governado por um sistema legal cuja autoridade emana de legisladores humanos - e não de revelações divinas.
Ao mesmo tempo, a população turca é quase inteiramente muçulmana e sente uma inevitável nostalgia pelo estilo de vida puro e bonito evocado pelo Alcorão - livro sagrado dos muçulmanos. Existe, portanto, uma tensão entre o Estado laico e os sentimentos religiosos do povo.
Ataturk tinha consciência dessa tensão e apontou o Exército como o guardião da constituição laica. Ele impôs um sistema de educação para oficiais do Exército que os tornaria instintivamente opostos ao obscurantismo do clero. O Exército seria um advogado do progresso e da modernidade, colocando o patriotismo acima da piedade nos corações do povo. Em obediência ao papel que lhe foi atribuído, o Exército turco interveio várias vezes, desde então, para preservar a concepção de Ataturk.
Os militares tomaram o controle, por exemplo, em 1980, quando a União Soviética tentava subverter a democracia turca e nacionalistas e esquerda brigavam nas ruas. O Exército também fez sua presença clara em anos recentes, quando o governo do primeiro ministro Recep Erdogan retrocedeu alguns passos, em direção aos antigos valores islâmicos.
O Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdogan é, em princípio, laico. Mas o primeiro ministro é um homem do povo e um muçulmano devoto, que acredita que o Alcorão contém um guia único para a vida humana, inspirado por Deus.
Ele não está feliz com uma constituição que coloca o patriotismo acima da devoção religiosa e que faz o Exército - e não a mesquita - o guardião da ordem social. O primeiro ministro já colocou um grande número de importantes oficiais do Exército no tribunal, acusados de subversão. Alguns estão na cadeia, em prisão perpétua.
Os julgamentos foram denunciados como inválidos, mas os que fazem as denúncias correm o risco de ser acusados de subversão. Jornalistas que se opõem às políticas de Erdogan tendem a acabar na cadeia. Jornais que criticam o primeiro ministro se veem às voltas com exigências absurdas do fisco ou recebem multas gigantescas. E protestos populares são esmagados com tanta força quanto seja necessário. Na Turquia, hoje, fazer oposição está ficando perigoso.
O caso turco ilustra vividamente o caso de que democracia, liberdade e direitos humanos não são uma coisa única, e, sim, três. Erdogan tem muitos seguidores. Venceu eleições três vezes, com maioria significativa. Mas liberdades elementares tidas como normais no Ocidente vêm sendo prejudicadas - e não reforçadas - nesse processo.
Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana em 1928, disse a seus seguidores que sua maior prioridade era reunir os muçulmanos do mundo em um Estado islâmico supranacional - ou Califado.
A imposição de fronteiras nacionais sobre povos que se definem em termos religiosos resulta no tipo de caos que temos observado no Iraque, onde sunitas e xiitas brigam pelo poder. E resulta também em um caos ainda maior, que observamos agora na Síria. Ali, uma facção islâmica minoritária - os alauítas - vem mantendo um monopólio sobre o poder desde a ascensão da família Assad.
Europeus, em contraste, tendem a definir a si próprios em termos nacionais. Em situações de conflito, é a nação que precisa ser defendida. E se Deus um dia ordenou de outra forma, então é hora de ele mudar de ideia.
Entre os muçulmanos, no entanto, esse tipo de pensamento é inaceitável. A religião islâmica se baseia na crença de que Deus criou uma lei eterna e cabe a nós nos submeter a ela. Isto é o que a palavra Islã significa: submissão.
O Islamismo sunita era a religião oficial dos otomanos. Nenhum outro tipo de Islamismo era reconhecido formalmente. Judaísmo, zoroastrismo e facções do cristianismo eram tolerados. Mas a história oficial, ao longo de vários séculos, era a de que o império era governado pela Sharia - a lei sagrada do Islã - acrescida de um código civil e pela lei doméstica de várias facções permitidas.
Ataturk aboliu o Sultanato e estabeleceu um novo código civil, baseado em precedentes europeus. E criou uma constituição que expressamente rompia todos os vínculos com a lei islâmica, proibia formas islâmicas de vestimenta, bania a poligamia, impunha um sistema laico de educação e urgia lealdade à terra turca como dever primário de todo cidadão turco.
Em qualquer crise, o cidadão deveria se identificar primeiro como turco. Só depois como muçulmano. Ataturk também autorizou o consumo de álcool, para que o povo turco pudesse brindar à sua nova condição da maneira preferida pelo general.
Ataturk remodelou a Turquia como um país aberto e próspero, que nada devia ao mundo moderno. Porque foi transformado em uma nação definida por língua e território, não por um partido ou fé.
O sufrágio universal para adultos de ambos os sexos foi introduzido na Turquia em 1933. E o país continua a ser governado por um sistema legal cuja autoridade emana de legisladores humanos - e não de revelações divinas.
Ao mesmo tempo, a população turca é quase inteiramente muçulmana e sente uma inevitável nostalgia pelo estilo de vida puro e bonito evocado pelo Alcorão - livro sagrado dos muçulmanos. Existe, portanto, uma tensão entre o Estado laico e os sentimentos religiosos do povo.
Ataturk tinha consciência dessa tensão e apontou o Exército como o guardião da constituição laica. Ele impôs um sistema de educação para oficiais do Exército que os tornaria instintivamente opostos ao obscurantismo do clero. O Exército seria um advogado do progresso e da modernidade, colocando o patriotismo acima da piedade nos corações do povo. Em obediência ao papel que lhe foi atribuído, o Exército turco interveio várias vezes, desde então, para preservar a concepção de Ataturk.
Os militares tomaram o controle, por exemplo, em 1980, quando a União Soviética tentava subverter a democracia turca e nacionalistas e esquerda brigavam nas ruas. O Exército também fez sua presença clara em anos recentes, quando o governo do primeiro ministro Recep Erdogan retrocedeu alguns passos, em direção aos antigos valores islâmicos.
O Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdogan é, em princípio, laico. Mas o primeiro ministro é um homem do povo e um muçulmano devoto, que acredita que o Alcorão contém um guia único para a vida humana, inspirado por Deus.
Ele não está feliz com uma constituição que coloca o patriotismo acima da devoção religiosa e que faz o Exército - e não a mesquita - o guardião da ordem social. O primeiro ministro já colocou um grande número de importantes oficiais do Exército no tribunal, acusados de subversão. Alguns estão na cadeia, em prisão perpétua.
Os julgamentos foram denunciados como inválidos, mas os que fazem as denúncias correm o risco de ser acusados de subversão. Jornalistas que se opõem às políticas de Erdogan tendem a acabar na cadeia. Jornais que criticam o primeiro ministro se veem às voltas com exigências absurdas do fisco ou recebem multas gigantescas. E protestos populares são esmagados com tanta força quanto seja necessário. Na Turquia, hoje, fazer oposição está ficando perigoso.
O caso turco ilustra vividamente o caso de que democracia, liberdade e direitos humanos não são uma coisa única, e, sim, três. Erdogan tem muitos seguidores. Venceu eleições três vezes, com maioria significativa. Mas liberdades elementares tidas como normais no Ocidente vêm sendo prejudicadas - e não reforçadas - nesse processo.
EgitoO exemplo egípcio é ainda mais pertinente. A Irmandade Muçulmana sempre teve como alvo ser um movimento de massa, procurando se estabelecer com o apoio da população. Mas seu mais influente líder, Sayyid Qutb, denunciou a ideia de "Estado laico" como uma espécie de blasfêmia, uma tentativa de usurpar a vontade de Deus passando leis que têm meramente uma autoridade humana.
Qutb foi executado pelo presidente Nasser, que assumiu o poder após um golpe militar. Desde então, a Irmandade Muçulmana e o Exército vivem em constante disputa. A Irmandade quer estabelecer um governo populista e ganhou uma eleição que, em sua interpretação, autorizou a transformação do Egito em república islâmica.
Qutb foi executado pelo presidente Nasser, que assumiu o poder após um golpe militar. Desde então, a Irmandade Muçulmana e o Exército vivem em constante disputa. A Irmandade quer estabelecer um governo populista e ganhou uma eleição que, em sua interpretação, autorizou a transformação do Egito em república islâmica.
Os pôsteres dos seguidores de Morsi não advogavam democracia ou direitos humanos. Eles diziam: "Todos nós estamos com a Sharia". Em resposta, os militares disseram: Não. Apenas alguns de nós estão. Então, por que um Estado moderno não pode ser governado pela lei islâmica? Esse é um assunto polêmico, sobre o qual estudiosos formularam muitas opiniões.
Lei humana X lei divinaAqui - válida ou não - está a minha: As escolas originais da jurisprudência islâmica, que surgiram durante o reinado do Profeta em Medina, permitiam que juristas adaptassem as leis às necessidades da sociedade, em transformação constante. Esse processo de reflexão é conhecido como ijtihad, ou esforço.
Mas esse processo parece ter sido interrompido no século 8, quando foi determinado pela escola teológica dominante naquele período que todos os assuntos importantes já estão definidos e que o "portão da ijtihad está fechado".
Tentar implementar a Sharia hoje cria o risco de que um sistema de leis criado para governar uma comunidade desaparecida há muito tempo seja imposto sobre a população, sem que esse sistema possa ser adaptado às circunstâncias mutáveis da vida humana. Resumindo: a lei laica se adapta, a lei religiosa meramente resiste.
Além disso, como a Sharia não se adaptou, ninguém sabe realmente o que ela quer dizer. Ela ordena que matemos adúlteros a pedradas? Alguns dizem que sim, outros dizem que não. Ela nos diz que investir dinheiro para receber juros é proibido? Alguns dizem que sim, outros dizem que não.
Quando Deus faz as leis, as leis se tornam tão misteriosas quanto ele. Quando nós fazemos as leis, e as fazemos para nossos próprios fins, podemos estar certos do seu significado.
A questão, agora, é "quem somos nós?". Que maneira de definir a nós mesmos reconcilia eleições democráticas com oposição verdadeira e direitos individuais? Esta, a meu ver, é a questão mais importante a desafiar o Ocidente hoje.
Mas esse processo parece ter sido interrompido no século 8, quando foi determinado pela escola teológica dominante naquele período que todos os assuntos importantes já estão definidos e que o "portão da ijtihad está fechado".
Tentar implementar a Sharia hoje cria o risco de que um sistema de leis criado para governar uma comunidade desaparecida há muito tempo seja imposto sobre a população, sem que esse sistema possa ser adaptado às circunstâncias mutáveis da vida humana. Resumindo: a lei laica se adapta, a lei religiosa meramente resiste.
Além disso, como a Sharia não se adaptou, ninguém sabe realmente o que ela quer dizer. Ela ordena que matemos adúlteros a pedradas? Alguns dizem que sim, outros dizem que não. Ela nos diz que investir dinheiro para receber juros é proibido? Alguns dizem que sim, outros dizem que não.
Quando Deus faz as leis, as leis se tornam tão misteriosas quanto ele. Quando nós fazemos as leis, e as fazemos para nossos próprios fins, podemos estar certos do seu significado.
A questão, agora, é "quem somos nós?". Que maneira de definir a nós mesmos reconcilia eleições democráticas com oposição verdadeira e direitos individuais? Esta, a meu ver, é a questão mais importante a desafiar o Ocidente hoje.
FonteBBC Brasil
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